quinta-feira, 11 de novembro de 2010

É a creche o melhor lugar para as crianças de até três anos?


Vital Didonet

O tema está na tona dos debates no mundo, em especial, em nosso país. Há dois anos, ele ganhou um reforço da breve entrevista da Revista Época com Steve Biddulph (Edição n° 497, de 12/11/2007) e, no ano passado, suscitado por um artigo no The Wall Street Journal, de 22 de agosto de 2008, que visava contrapor-se à proposta do então candidato Barack Obama, de universalizar a educação infantil.

Analiso as duas citações e faço um comentário sobre a perspectiva brasileira.

1. Steve Biddulph é um psicólogo australiano bastante conhecido por seus livros, que chegaram à casa dos 4 milhões de exemplares, traduzidos em 29 línguas. Ele é um terapeuta familiar e se dedica a orientar pais sobre como cuidar e educar seus filhos. Em More Secrets of Happy Children, questiona os pais sobre sua decisão de colocar seus bebês em uma creche. Está traduzido para o português sob o título de O segredo das crianças felizes. Também em língua portuguesa, temos o livro Criando Meninos, exposto com destaque em prateiras de livrarias por todo o país.

O que Steve Biddulph defende em O segredo das crianças felizes é a necessidade de maior interação pais-bebê, da criação, aprofundamento e manutenção dos vínculos afetivos. Como ele atua como terapeuta familiar, é coerente que insista sobre esse ponto. Colocar a criança pequena em creche é, para muitos pais, um desencargo, uma libertação das exigências de atenção, apoio, presença e interação com seus filhos pequenos. Mas provavelmente a maioria se aparta de seus filhos pequenos não por esse motivo e sim porque trabalham o dia inteiro e não podem dar a atenção que seus filhos precisam.

A pergunta, então, não é: a família ou a creche. Mas: sozinho em casa, sob o cuidado de irmãozinhos, entregue a uma vizinha para que cuide do bebê ou uma instituição especializada de cuidado e educação em primeira infância. A pergunta mal posta gera uma resposta que distorce a realidade.

2. Barack Obama usou o argumento do alto retorno econômico do investimento da faixa pré-escolar e prometeu, durante a campanha da eleição, injetar 10 bilhões de dólares no programa denominado "Zero-a-Cinco". Os articulistas do Jornal contra-argumentam que o retorno não é tão alto – e citam o Prêmio Nobel de economia, James Heckman, que é a carta da vez na defesa do investimento em educação infantil. Segundo Heckman, dizem, o retorno é bem menor do que os valores indicados em algumas pesquisas e que os efeitos constatados se aplicam a populações pobres, marginalizadas, de baixa expectativa social e grande probabilidade de cair na marginalidade. Levantam a hipótese de que esse efeito não seria tão significativo na população de classe média e alta. Afirmam que pesquisas indicam aumento de ansiedade e agressividade entre as crianças provenientes de pré-escolas em comparação com as que não a freqüentaram.

O que eles defendem, da mesma forma que Biddulph, é a importância das relações familiares. Pena que o fazem contrapondo-a ao papel das instituições específicas de educação infantil para as crianças de até três anos. E aí está o engodo. Cuidado e educação na família e cuidado e educação em instituições especializadas são duas coisas diferentes e complementares. A família é necessária para toda criança, a educação infantil nos três primeiros anos de idade é necessária para muitas delas e bastante importante e muito significativa para todas, desde que a instituição seja de boa qualidade. Quem conhece as idéias e a prática de Loris Malaguzzi, no sistema educacional de Reggio Emilia, já ouviu e certamente se convenceu de que a articulação das creches e pré-escolas com a família é a forma mais completa e benéfica de apoiar, incrementar e expandir o desenvolvimento integral das crianças desde seus primeiros anos de vida.

Um problema que vem afetando o desenvolvimento psicológico, social e cognitivo das crianças é que as relações intra-familiares, de presença, afeto e apoio na exploração do mundo estão se tornando menos freqüentes e, em muitos casos, mais frágeis ou conturbadas. Nas sociedades mais avançadas tecnologicamente, quando os pais não estão no trabalho, estão em clubes, reuniões, teatros ou cinema, barzinho ou, talvez, com mais regularidade, diante da TV, do Vídeo, do DVD, enquanto seus filhos pequenos têm seus aparelhos eletrônicos no quarto (tv, videogame, etc.), são obrigados a brincar sozinhos ou são colocados em "escolinhas" de línguas, balé, judô, natação... O curta-metragem de Liliana Sulzbach (2000), A Invenção da Infância, é uma prova visual desse fenômeno. Por que nos chama tanta atenção vermos um pai brincando com seu filho pequeno de forma amorosa e zelosa? Certamente, porque é um fenômeno pouco freqüente e porque é uma manifestação das necessárias relações intra-familiares de cuidado e educação,

O citado artigo preconiza o que é óbvio: que crianças que têm pais amorosos e atenciosos podem ser muito melhores gastando mais tempo em casa do que longe deles nos anos de sua formação. O difícil é conciliar esse tempo de interação pais-filhos com as dez horas que os primeiros estão fora de casa durante cinco dias por semana no trabalho. A extensão de dois meses da licença maternidade, aprovada pela Lei nº 11.770/2008, para fins exclusivos de amamentar o bebê até seis meses de idade, vem gerando controvérsia daqueles que temem que isso prejudique a mulher na sua carreira profissional, na garantia do seu emprego, na competitividade com aquelas que não tiram essa licença... Há uma tensão entre as funções de cuidado e educação dos filhos nos seus primeiros anos de vida e as funções sociais e econômicas da família.

A pergunta que os articulistas não se fazem é: os pais de classe média e alta estão realmente em casa, têm eles disposição para ficar as oito ou dez horas do dia com seus filhos pequenos, em atividades que estimulem a busca, a curiosidade, dão vazão à energia e atividade infantil, têm eles conhecimento e condição de colocar para seus filhos os materiais que uma instituição especializada faz, como tintas, papéis coloridos, jogos, etc?

É importante sublinhar que a luta pelo reconhecimento do direito da criança à educação infantil desde o nascimento sempre defendeu a importância dos laços familiares, do vínculo mãe-bebê, família-bebê, da participação dos pais na creche. A associação das duas idéias está coerente com o princípio da LDB de que a educação infantil é complementar à ação da família. Não nega, portanto, o papel da família como primeira educadora, antes quer apoiá-la nesse papel, oferecendo a seus filhos um espaço de interações sociais ampliadas e de atividades diversificadas em linguagem, artes, pensamento lógico-matemático e experiências de interação criança-criança, criança-adulto. Seria um retrocesso voltar ao tempo do "o amor basta". À luz do conhecimento sobre fatores de desenvolvimento infantil, sabe-se que o carinho e o cuidado adequados bastam para um bom desenvolvimento nos anos iniciais da vida. De que teriam servido as pesquisas no campo da neurociência, da formação da inteligência, se continuássemos com as antigas noções de que o amor basta?

Esse debate vem sendo acalentado, nos Estados Unidos, por motivos políticos, mas também para carrear mais recursos para idades posteriores do processo educacional, onde vem se constatando falhas no rendimento escolar. Mas, no fundo, ele funciona como contra-argumento para a educação infantil na faixa de 0 a 3 anos. Tem gente por aqui que vai adotar esse discurso, pois libera o poder público do dever, hoje constitucional e legal, de garantir o atendimento em creche ou outro tipo de estabelecimento de educação infantil a partir do nascimento. É bem mais fácil para o governo mandar as famílias cuidar de seus filhos até os quatro anos de idade do que construir, equipar e manter creches com profissionais formados para todas as crianças cujos pais necessitam ou desejam esse atendimento. E teria um bom volume de recursos para universalizar a pré-escola até com suntuosidade.

O recente Movimento pela inclusão da creche no Fundeb é uma contundente demonstração de que o Brasil não aceita esse retrocesso na concepção de educação infantil, porque ele reduz o direito à educação e priva a criança de até três anos de idade de uma comprovada experiência de aprendizagem e desenvolvimento. A estratégia para vencer essa ameaça contra a criança é reforçar a visão da complementaridade entre a educação inicial na família e a educação infantil em instituições específicas. Não qualquer educação, obviamente, mas aquela com profissionais especializados e espaços de interações sociais ampliadas, com atividades diversificadas que alargam a visão do mundo por parte das crianças.

Vital Didonet é pedagogo, integra o Grupo Creche da Associação ABEBÊ Organização Mundial paa a Educação Pré-Escolar – OMEP Brasil e coordenador da Rede Nacional Primeira Infância.


Extraído do site  http://www.senado.gov.br/senado/programas/infanciaepaz/eventos/semana3/detalha_txt.asp

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